POR QUE DEFENDER DIRETAS JÁ É UM ERRO

“Se o parágrafo único do primeiro artigo da Constituição reconhece todo o poder emanar do povo, e uma das formas da sua expressão ser a do voto, tem-se de dar como certo o sujeito dessa soberania ter escolhido recentemente a presidenta Dilma como mandatária desse poder”. (Foto: Divulgação)
A legitimidade é um dos elementos constitutivos do conceito de democracia. Nem a legitimidade nem a democracia são entes abstratos sem enraizamento no mundo real. Elas têm um vínculo concreto e extremamente íntimo. Numa democracia, a legitimidade de quem governa emana do voto popular. Isso não é um detalhe. Retire-se isso e a democracia se esvai, transformando-se em uma forma de tirania e usurpação de poder. É justamente essa ameaça que o Brasil vive agora com a tentativa de derrubada da presidenta Dilma Rousseff, eleita pelo voto popular, em 2014, por mais de 54 milhões de votos.
A história política brasileira é pródiga em momentos e demonstrações de desprezo pelo voto popular. Essas demonstrações, não por acaso, partem sempre dos mesmos setores sociais, os que habitam o chamado andar de cima, e ocorrem sempre pela mesma razão: quando os dos andares de baixo começam a se aproximar perigosamente do andar de cima. Nem é preciso chegar muito perto. Quando sentem cheiro de povo, acionam seus braços midiáticos, tiram do armário o discurso contra a corrupção e o comunismo e saem a destruir a democracia mais uma vez. Foi assim com Getúlio em 1954. Foi assim com Juscelino em 1955, com Jango em 1961 e em 1964. E agora é assim com Dilma. Desprezar a vontade expressa pelo voto popular não tira o sono dessa elite reacionária e anti-popular que ameaça a democracia brasileira mais uma vez.
Vladimir Safatle escreveu que o governo Temer não existirá, pois carece de qualquer legitimidade. Ele e seus aliados são usurpadores do poder que, numa democracia, só é legítimo por meio do voto popular. “Este governo deve cair e todos os que realmente se indignam com a corrupção e o desmando devem lutar sem trégua, a partir de segunda-feira, para que o governo caia e para que o poder volte às mãos da população brasileira”. Está certo Safatle. O centro da conjuntura agora, para todos os defensores da democracia no Brasil, deve ser a denúncia dessa tentativa espúria e ilegítima de um suposto governo Temer. Esse governo não existirá, ao menos como uma manifestação da democracia. E se é algo que está colocado fora da democracia deve ser extirpado como um tumor maligno que ameaça o futuro do país.
É esse o desafio do presente. Defender Diretas Já neste momento é um grave erro político ao menos por duas razões. Em primeiro lugar, a legítima mandatária do país é a presidente Dilma Rousseff, eleita, como foi dito acima, com mais de 54 milhões de votos. Dilma vem repetindo que não renunciará e que lutará pelo seu mandato até o último segundo. Cabe então, a todos os seus apoiadores e defensores da democracia, cerrar fileiras com ela por uma questão de lealdade, não pessoal, mas com a ideia de legitimidade que é fundante da democracia. Somente a própria presidenta eleita está autorizada a abrir mão do que lhe foi conferido por mais de 54 milhões de brasileiros.
Em segundo lugar, é preciso resistir à tentação recorrente na história brasileira de jogar o voto popular na lata de lixo pelas razões mais fúteis, como seu viu de forma abundante no último domingo na Câmara dos Deputados, por supostas razões táticas e conjunturais ou simplesmente por desprezo à democracia mesmo. Esse desprezo, aliás, parece estar no DNA de entidades empresariais como Fiesp e Fiergs e também de entidades da sociedade civil que, supostamente, deveriam estar na linha de frente da defesa da democracia, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que, assim como procedeu em 1964, agora coloca-se mais uma vez do lado dos golpistas e dos inimigos da democracia.
O centro da luta política agora, portanto, não pode ser uma campanha por Diretas Já porque essas Diretas já aconteceram em 2014 e uma mulher foi eleita presidenta da República com mais de 54 milhões de votos. Mesmo que o Senado instale o julgamento e afaste Dilma por seis meses, este período deve ser de denúncia da ilegitimidade e do caráter espúrio de um governo Temer-Cunha e de insubordinação civil contra estes usurpadores da fonte de legitimidade da democracia.
Como disse Cedenir de Oliveira, da direção do MST e da Via Campesina no Rio Grande do Sul, “na medida em que as regras democráticas e os acordos estabelecidos a partir da Constituição de 88 são rasgados, tudo vale. Se isso acontecer, os autores dessa ruptura também poderão sofrer ações não democráticas, pois colocaram a si e a todo país para fora do estado democrático de direito. Aqueles que rasgarem a Constituição não dormirão em paz”.
Defender Diretas Já, com Dilma lutando até o fim pelo seu mandato, significa desrespeitar o voto de mais de 54 milhões de brasileiros e relativizar o que não deve ser relativizado, a saber, a fonte da legitimidade em uma democracia.
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